terça-feira, 18 de maio de 2010

Tu divides, eu escolho!


Vivíamos uma vida boa.
A minha casa era confusa, barulhenta, por vezes conflituosa, onde o respeito pelos mais velhos era lei e as crianças nunca tinham direito a ter opinião sobre nada, e nunca podiam interromper os mais velhos para nada. Via-se o telejornal e a telenovela, não havia desenhos animados nem tampouco mudávamos de canal se os meus pais estivessem em casa.
Passei a infância praticamente sem contacto com o meu pai, que saia para trabalhar às 5h da manhã para abrir a pastelaria e não voltava antes das 22h ao fechá-la. A minha mãe, grande parte do dia passava-lo igualmente na cozinha da pastelaria, as minhas irmãs, na escola e sobrava eu e o meu irmão gémeo, velados pela minha avó.
Eu e o meu irmão nascemos com 10 anos de diferença da irmã mais nova de três. Éramos uma raça diferente de filhos, éramos "os miúdos". Todos os nossos brinquedos eram de ambos, nunca tive bonecas, apenas puzzles, Playmobile, Leggos, brinquedos generalizados. Mas o que mais gostávamos era de brincar um com o outro, brigar por um brinquedo que até nem queríamos assim tanto, fazer fortalezas com as cadeiras da sala e atirar bolas feitas de meias um ao outro ou simplesmente conversar.
A minha mãe muitas vezes para nos embaraçar conta uma conversa que ouviu de nós os dois, onde o meu irmão me dizia "ainda bem que sou rapaz e tu és rapariga, porque tu vais ter que ter bebés e já ouvi dizer que doem muito a sair" e eu lhe respondia "prefiro mil vezes ser rapariga porque posso tomar a pílula e assim já não tenho bebés, enquanto que tu és obrigado a ir à tropa, não podes fugir". O meu irmão tinha medo da tropa. Eu não tinha medo de nada.
Era malandra, enganava-o e pregava-lhe partidas. Escrevia nas paredes imitando a letra dele, apenas para ele apanhar uma palmada, chateava-o até que me batesse para eu chorar muito e a mãe bater nele. Tinha dias aborrecidos em casa e o meu irmão era o meu brinquedo preferido.
Onde o enganava mais era a dividir as garrafas de Coca-Cola. Só nos era permitido beber Coca-Cola ao domingo, uma garrafa a dividir para os dois. E depois de muitas brigas nossas sobre "ele tem mais que eu", o meu pai institui a regra de "um divide e ou outro escolhe". Eu queria sempre dividir, o meu irmão queria sempre escolher. Eu tinha uma táctica: escolhia dois copos diferentes, um ligeiramente mais largo de o outro e mais baixo e enchia-o com um milímetro a menos que o copo fino e alto. O meu irmão escolhia sempre o copo fino e alto, pensando que tinha mais e isso dava-me o maior gozo que eu poderia retirar!
A minha motivação era mesmo essa, ter essa vitória secreta de o ter enganado, até porque deixava sempre metade do copo cheio e ele acabava por bebê-la.
Apesar destas competições entre nós, éramos solidários um com o outro e muito amigos. Sempre que alguém dava um presente ou uma guloseima a um de nós, exigíamos sempre um igual para o outro.
Podíamos até brigar, mas não estávamos inteiros quando sozinhos...

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