segunda-feira, 17 de maio de 2010
A primeira lembrança da minha avó
O meu pai descrevia-me muitas vezes o modo exímio como a minha avó me dava banho quando bebé. Pegava em mim com uma mão, de dedos apoiando a cabeça e antebraço apoiando a coluna, enquanto a outra mão molhava gentilmente o meu corpo e a sua voz macia me cantava e os seus olhos verdes me olhavam repletos de amor.
Recordo-me dos seus cabelos ruivos riscados de branco que roçavam a cintura e de como ela os penteava na marquise ao sol, e os enrolava num carrapito e prendia com ganchos. Achava aquilo fantástico, como é que ela conseguia pôr tanto cabelo num rolinho tão perfeito junto à nuca?
Deixou-me por várias vezes tentar, com resultados desastrosos e gargalhadas, sem pressa de corrigir o penteado.
Recordo-me de brincar aos gatos com o meu irmão gémeo, roçando as pernas enrugadas e cheias de sardas da minha avó enquanto ela sorria para nós ao cuidar do nosso dia.
A minha avó nunca tinha pressa, dava-me atenção. Levava-me à escola, ao jardim, ao cemitério... este último poderá parecer macabro mas eu gostava. E gostava porque ela me explicou o motivo pelo qual íamos ao cemitério. "há muita gente que morre sem que ninguém lhe reze um Pai Nosso, Norinha. Vamos rezar por essas pessoas que morrem sozinhas".
A minha avó ensinou-me muitas coisas.
Sendo analfabeta vinda de uma pequena aldeia no meio de montes do Minho, ela ensinou-me o respeito - só me respondia se lhe chamasse"avózinha"; ensinou-me a respeitar a natureza - deixava-me brincar na aldeia durante o Verão, dias inteiros, de joelhos esmurrados, cabelos cheios de palha, erva e flores, milhentas histórias sobre animaizinhos que vi nascer, frutos que colhi, rios que atravessei... e apenas sorria para mim, com aquele olhar mais doce da minha memória.
Ensinou-me a rezar. Nos seus joelhos, aprendi todas as orações. Na terra, ia com ela à missa pela estrada em manhãs enevoadas de domingo e achava aquele trajecto como que uma aventura só nossa. Ensinou-me a compaixão pelos outros e a ser educada e amável para com todos.
Era a melhor avó que alguém poderia ter para crescer de mente sã e bom coração. Ela brincava comigo, dava-me a mão para adormecer de camas paralelas no escuro, ao dividir uma cama, permitia que eu adormecesse empoleirada nela.
Quando cresci um pouco e aprendi a ser dissimulada, a competição infantil com o meu irmão gémeo fazia-me pregar muitas partidas e a promover muitas brigas onde saia fazendo-me passar por inocente. A minha avó acreditou sempre em mim e defendeu-me sempre porque, dizia ela "a menina está a chorar mais alto".
Amava-me cegamente e eu a ela por me amar assim.
A minha avó adoeceu quando eu tinha 14 anos. Cheguei a casa da escola num dia de inverno chuvoso e ela estava deitada na cama e disse-me "Norinha, troca de roupa estás toda molhada".
Achei a voz dela estranha e comentei com os meus pais. Nessa noite a minha avó teve 3 AVCs, sendo o terceiro poderoso, mas felizmente já no hospital internada.
Lembro-me da distância que aquele quarto de hospital criou entre nós, que desde sempre partilhámos um quarto. Sentia que a abandonava, ao ir para casa. Abandonei-a um bocadinho todos os dias a partir desse dia.
A minha avó recuperou bastante e voltou para casa. Porém, a nossa casa tão cheia de gente, quartos com irmãos em magotes, não era possível abarcar com uma cama ortopédica para ela. Foi viver para casa da minha tia.
A minha avó a partir desse dia, foi morrendo um bocadinho todos os dias e eu não vi isso. Adolescente parva, centrada em si mesma e nos dilemas ocos do seu cabelo, sempre que a ia visitar, aborrecia-me por ter de ir dar uma voltinha com ela para se exercitar.
Apercebi-me que a minha tia maltratava a minha avó depois de umas conversas ouvidas em casa. E a minha avó passou a chorar muito sempre que eu a visitava, e abraçava-se a mim e pedia para voltar para nossa casa.
E quem era eu ? Uma miúda parva que não percebia nada do que se passava, que não se preocupava com nada além de si mesma e que não se apercebeu do sofrimento diário da sua melhor amiga, da sua melhor mãe, do seu tudo.
E a minha avó por fim morreu. Um ano depois de tudo isto, na sua terra, num dia lindo de Verão, de forma repentina e indolor. E eu morri um bocadinho nesse dia com ela.
Não fui capaz de ir ver a sua versão inanimada, com os seus olhos doces fechados e o seu sorriso meigo escondido no seu sono profundo.
Recordo-me das saudades que tive, como se ela tivesse ido para longe e por algum motivo não voltava mais.
Sempre a recordei, com muita saudade e com o coração tão cheio de pena por ser nova demais para perceber a sorte que tinha por ela ser minha, cheio de pena de não ter cuidado dela quando ela me pediu, por não lhe ter feito mais companhia quando ela foi a minha companhia no desfiar de anos do meu crescimento.
Amo-te, avozinha, contigo fui a melhor versão de mim mesma.
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